



Memento Mori
Fotos e texto: Luzo Reis
Publicado originalmente em setembro/2021 na revista Esferas
O ensaio visual Memento mori reflete sobre as funções da imagem fotográfica diante das recorrentes crises ambientais provocadas pela ação do homem. Testemunho, evidência, memória, sonho, alerta são evocados diante da histórica seca e das queimadas que atingiram o pantanal de Mato Grosso no ano de 2020
Em 1905 o fotógrafo e caçador alemão Carl G. Schillings publicou “With flash-light and rifle”, um livro repleto de histórias de caçador e fotos de animais africanos. No prefácio, um naturalista de Stuttgart, Dr. Lampert, elogia a obra dizendo que "(...) O mundo animal da África viverá nessas imagens muito depois que os animais forem varridos da terra pelo avanço do homem" (SCHILLINGS, 1905, p.13). Longe de ser um ponto fora da curva, a fala de Lampert se soma ao discurso geral do livro que considera inevitável a extinção da natureza diante do progresso. A fotografia, então, seria redentora da ação humana, uma vez que salvaguardaria o mundo natural às futuras gerações. Uma conveniente troca da imagem pelo referente assentada em uma fé cega no progresso encontrada em diversos documentos dos primeiros tempos da fotografia.
No ano de 2020, documentei a forte seca e as queimadas de grandes proporções que assolaram o pantanal brasileiro. As águas da baia de Chacororé, uma das mais exuberantes do pantanal, situada em Barão de Melgaço-MT, sofreu uma redução de cerca de 60%, uma marca histórica. Nas primeiras imagens desse ensaio vemos o senhor Onofre, ribeirinho que vive às margens da baía, nos mostrando suas imagens-memórias da década de 1990. Uma vista aérea que exibe a magnitude de Chacororé, repleta de água, interligando-se por meio dos coríxos (canais estreitos e sinuosos) a outras lagoas: um ícone do imaginário pantaneiro. As outras imagens as seguro em minhas mãos a exemplo de Seu Onofre. As realizei em algum ponto onde na foto do ribeirinho há água em abundância. Aqui não apenas falta água, falta vida: desde a vaca magra que rumina o escasso mato que brota do chão craquelado, fundo de uma lagoa que em tempos de cheia é berçário de peixes; a estrutura de madeira que restou como um monumento erguido na paisagem desértica; os jacarés mortos pela seca e pelo fogo; as árvores que cozinham em meio a fumaça e finalmente o pantaneiro que nos encara desalentado diante de um fundo crestado.
Proponho assim uma reflexão em várias direções: rumo ao passado, as minhas imagens de 2020 acham a memória de Seu Onofre na foto de 1990. A evidência encontra a memória mostrando que, ao contrário do que anunciava o Dr. Lampert no livro de Schillings, a natureza não resiste a novas imagens e pontos de vista. No presente, essas imagens dialogam com a resiliente ideia do progresso moderno por trás dos inúmeros projetos de construção de hidrelétricas na bacia do alto-paraguai, com o desmatamento e as queimadas descontroladas que ameaçam permanentemente o bioma. Em direção ao futuro, penso nessas imagens como alertas. Seu Onofre nos brinda com uma lembrança bonita de Chacororé, embora seu olhar desfocado em segundo plano traga um misto de assombro e denúncia apontado à minha e às futuras gerações. Aliado a ele, ofereço a vocês e aos próximos minhas imagens-memória do terrível ano de 2020. O conjunto então se torna memento mori para não esquecermos da natureza, da vida, do fim e da potência e do limite das imagens.
__________________________________________
REFERÊNCIAS:
SCHILLINGS, C. G. With Flash-light and rifle: photographing by flash-light at night the wild animal world of equatorial Africa. Transleted by Henry Zick. New York: Harper & Brothers publishers, 1905.